Crônicas de Zephira #3

TRÊS

A guerra cultural foi um movimento crescente que, com o passar dos anos tomou forma e invadiu as principais mídias do mundo. Muito bem disfarçada de apoio ao fim do preconceito de forma geral ela criou um conceito novo dentro da cultura que determinar que as diferenças não deveriam ser combatidas ou repensadas e sim aceitas. Isso soou muito bem para a população geral, algo como “aceite o seu próximo como a ti mesmo”, porém alguns grupos religiosos sofreram tanto com esta guerra que mensagens sobre a vida e a maneira como devemos leva-la foi aos poucos apagadas da igreja. A igreja por sim mesma tentou estabelecer um ponto médio ensinando que Jesus condena o pecado, mas ama o pecador, mas as pessoas queriam mesmo continuar sendo amadas pela religião, ainda que amando os seus próprios pecados. Assim toda igreja a partir de 2020 ensinava a salvação geral, não importando o que você fazia ou deixava de fazer. Com isso as poucas igrejas que não se preocupavam com a mensagem bíblica aproveitou de fato a guerra cultural para se estabelecer e crescer ainda mais em cima de ensinamentos estranhos aprendidos de anjos diferentes, pessoas que tinham um propósito que mais tarde seria revelado, por enquanto víamos aos poucos como a política e a falsa religião iam aos poucos consumindo e abafando a religião presente nos antigos livros da bíblia, que também foram sendo afastados do livro usado pela igreja que permaneceu atuante. Consequentemente outras centenas de igrejas foram acabadas, compradas ou tiveram seus membros levados para as novas igrejas liberais. Muitos pastores e líderes foram mortos ou fugiram, alguns com os poucos membros que tinham continuaram a pregar o evangelho bíblico até serem entregues por liberais ou mortos enquanto ensinavam a mensagem de arrependimento. Na época em que o movimento dos doze teve início poucos pregavam os evangelhos e poucos tinham acesso a todos os livros.  Cultos como o que estava acontecendo agora era mais um momento para ensinar uma espécie de autoajuda santa àqueles que achavam ser salvos, ou no caminho perfeito.
A igreja parecia uma garagem por dentro, o teto alto dava a entender que eram dois andares. As paredes eram pintadas em dois tons aparentemente com tinta óleo, dois degraus separavam o púlpito do local onde ficavam os fiéis em grandes bancos de madeira pura que deixavam apenas um corredor no centro do templo. 

Enquanto todos estavam em estado de oração, Diana, Carlos e Páti observavam todo o movimento com bastante atenção. Um clima de transe intenso tomou conta do local fazendo com que todos entrassem em um estado muito parecido com uma hipnose coletiva. As pessoas diziam palavras estranhas, olhavam de forma esquisita umas para as outras e na frente num púlpito feito em mármore azul escuro um suposto pastor usando um microfone sem fio dizia receber mensagens de um anjo que supostamente as recebiam de Deus. Toda coreografia era feita de forma tão real que Diana pensou se ele realmente não estaria recebendo todas as mensagens e aquilo tudo não estava acontecendo de verdade. Foi então que Carlos com um cutucão a trouxe de volta, estava prestes a entrar no mesmo transe coletivo.

- Olhe Diana, preste atenção no púlpito, ignore o som e o que está acontecendo a sua volta. – Disse apontando para o pastor no púlpito, agora voltando para o canto esquerdo da igreja onde recebia as mensagens do anjo.
- Não consigo entender, vejo tudo o que está acontecendo, mas não consigo sentir a lógica… - reclamou a moça buscando com os olhos o que poderia estar acontecendo.
- Você precisa observar não apenas com a mente… olhe com o coração… agora você pode enxergar também, só precisa despertar este novo sentido dentro de você… - sussurrou Páti segurando a mão de Diana enquanto colocava a outra no peito para se fazer entender.

Diana apertou bem os olhos e se concentrou nas palavras dos dois, pode parecer estranho estar obedecendo dois estranhos dentro de um culto estranho como aquele, poderia ter sido considerada louca no outro dia por confiar neles, mas Diana não estava se importando com os riscos. Ela iria até o fim, pelo menos naquele dia. Caso não funcionasse ela poderia ir embora e continuar sua vida, não seria um problema esquecer toda aquela loucura.

A moça abriu os olhos devagar para que pudesse ter a chance de perceber que aquilo era sim uma loucura, porém aos poucos sentiu que toda aquela presença intensa e constante e o ar pesado e quente não era devido a quantidade de pessoas no mesmo local, havia sim alguma coisa acontecendo ali e essa sensação fez a moça parar um pouco enquanto pensou em desistir de continuar descobrindo o que estava do outro lado. Era tarde demais, ela já fazia parte de tudo o que iria acontecer no futuro, mesmo uma decisão como essa não seria capaz de afastar seu próprio destino, quando você faz parte de algo nada pode tirar você de lá. 

Com uma visão embaçada do que seria todo aquele culto, Diana conseguiu ver que o pastor recebia mensagens vindas de um anjo, que as traziam de outro anjo maior, assentado em um trono branco marfim que refletia as luzes da igreja como se fossem dele mesmo, como se o trono fosse de grande poder, lugar de alguém muito importante. Havia não apenas um trono, mas algo como um cenário armado por trás da própria realidade. Dali um anjo esperava o outro segurando um enorme livro, quando o anjo menor voltava o anjo no trono retirava do livro informações e as passavam para que o outro entregassem elas ao pastor.

- Veja Diana – disse Carlos apontando para um dos fiéis – Eles conseguem mergulhar no mundo espiritual também, porém a camada de realidade em que penetram está completamente dominada pelo anjo assentado no trono, o que eles conseguem ver é apenas o que o anjo os mostra. É como a nossa realidade, pensamos nela como única e verdadeira, mas apenas não conseguimos enxergar o que existe do lado de fora.
- Assim eles fazem com que as pessoas consigam ver exatamente o que imaginam sobre o mundo espiritual no momento do culto, se perguntássemos a duas pessoas o que ela está vendo você encontraria diferenças gritantes sobre o mesmo local. Nós, porém, temos acesso ao mundo espiritual sem a máscara imposta pelo poder deste anjo no trono, vemos exatamente o que eles estão fazendo. Perceba que isso para eles também é um culto… um culto a eles mesmos… - Completou Páti subindo no banco para poder enxergar melhor o que estava acontecendo. Diana permanecia imóvel diante de tudo que via. Aos poucos o suor foi aparecendo em sua testa, estava tensa e mal acreditava no que estava conseguindo observar. Agora conseguiam ver três anjos, um assentado no trono usando vestes tão escuras que não podiam refletir o brilho das lâmpadas, outro menor que recebia informações dele e transmitiam para o pastor e um terceiro anjo, o maior dos três, caminhava por entre o povo usando uma espécie de armadura dourada, tinha pelo menos seis asas diferentes, duas apontavam para o céu enquanto as outras menores estavam envoltas em seu corpo como parte da próprias armadura, Diana podia ouvir o som do que seria o metal das suas botas roçando o chão a cada passo que dava. Onde ele passava as pessoas mais sensíveis interpretavam como a presença do próprio Espírito Santo e começavam a falar coisas estranhas que pareciam como músicas.

Naquele momento os três tiveram sua atenção voltada para o anjo que estava no trono. Fechando um grande livro onde Diana pode ler as palavras MAGNUS LIBER MORTIS na capa, ele mesmo se voltou para o anjo que estava no meio da multidão enquanto chamou o pastor com uma das mãos. Toda igreja foi instantaneamente silenciada pelo poder daquele anjo que agora ditava informações no ouvido do pastor que dizia estar recebendo uma mensagem do próprio Deus. Houve um momento de tanto silêncio que Diana começou a olhar para os lados com medo de que estivesse sozinha no local. Os três se olharam esperando o que poderia estar acontecendo na frente da igreja, Diana com olhos fixos no anjo que entregava algum tipo de instrução para o pastor sentiu todo seu corpo endurecer quando o anjo ainda falando com o homem olhou fixamente para ela. Foi como se aquele anjo entrasse em sua mente apenas com o olhar, sentiu todo seu corpo se arrepiar, seu ar parou por um momento enquanto ela se forçava a olhar para Carlos que estava passando pelo mesmo sufoco e Páti apertava sua mão ainda mais sem conseguir soltar. 

- Diana… vamos sair daqui… rápido! – Carlos disse com um sussurro e puxou ela para fora do banco. Ainda com o corpo paralisado pelo olhar do anjo Diana mal conseguia andar quando foi levada para fora e empurrada pela garota. Enquanto saiam pelo portão do templo duas pessoas saíram juntas com a intensão de segurar os dois para alguma coisa que aparentemente não interessou os três que saíram disparados pela rua. Lá fora a noite já avançava, haviam poucos carros parados e as pessoas já não andavam mais pelas calçadas, a iluminação fraca dos postes fez com que eles ficassem perdidos por um momento até que conseguiram identificar bem onde estavam, atravessaram correndo as duas pequenas e apertadas até o outro lado avançando por entre as pessoas para ganhar cada vez mais espaço entre eles e os dois sujeitos que vinham atrás.

Pararam duas esquinas depois para descansar numa rua menor ainda. Prédios antigos e mal iluminados faziam sombras dos dois lados aproveitando a iluminação que era pior ainda do que na rua anterior, Carlos levava Páti com muito esforço e Diana não tinha fôlego bastante para correr mais uma quadra. Dois minutos depois os dois perseguidores atravessaram a rua em disparada parando do outro lado procurando pelos três. Diana escondera atrás de uma caçamba abandonada na calçada enquanto Carlos e Páti escondiam entre dois prédios antigos. Com um sinal Carlos mandou ela correr até o topo de uma periferia próximos a ele onde se encontrariam quando tudo terminasse e então desapareceu na escuridão dos prédios enquanto os dois perseguidores caminhavam lentamente pela rua esperando o primeiro movimento para atacar. 

Atrás da caçamba e iluminada por um velho neon rosa piscando havia um beco que seguindo por ele Diana faria a volta por um prédio velho alcançando assim uma outra rua onde teria acesso a escada que desaparecia pelo morro onde tinham marcado o reencontro. A moça correu pelo beco, mas escorregou em uma poça antes de fazer a curva e foi vista por um dos homens que chamando a atenção do outro se separaram, um em sua direção e outro seguindo para a próxima rua. – Vamos pegar ela na rua da praça, corre, ainda dá tempo! – Gritava um deles partindo atrás de Diana.

Diana chegou primeiro, uma rua principal mais larga do onde estavam, com uma praça protegida por uma grade fina e alta fechada devido ao horário, apenas um segurança já de idade dormia sentado numa cadeira velha encostada no portão baixo a uns cinquenta metros do portão principal. Atrás da moça os dois se encontraram no mesmo ponto e enquanto ela tentava desesperadamente escalar o topo do portão para se esconder perto do vigia adormecido. Enquanto se esforçava para subir tendo os pés preso pela grade poucos segundos depois de ser vista, foi alcançada por um dos perseguidores, teve um dos pés puxados fazendo-a despencar no chão batendo com as costas na grade dura da praça. Enquanto tentava se recompor o segundo homem acertou-a com um golpe nas costelas fazendo-a desistir de qualquer intensão e cair completamente ao chão enquanto o outro buscava desesperadamente agarra-la pelos cabelos e completar o serviço. Os dois a ergueram segurando pela blusa e os braços ao mesmo tempo e a jogaram contra o portão fazendo com que ela novamente despencasse no chão. Do outro lado o vigia ainda permanecia imóvel.

- Veja só Lorenzo… me parece que nossa espiã não está tão preparada assim… - zombou um dos homens chutando os pés da moça para ver se havia alguma reação.
- Vamos deixar ela aqui mesmo, me parece mais uma dessas atéias tentando falar mal daquilo que o nosso santo bispo tem feito por nós… essa aí não vai fazer mal a ninguém mais… - disse buscando o queixo dela para ver melhor seu rosto enquanto tentava afastar seus cabelos grudados no rosto, Diana respirava mal, mais um pouco matariam ela não fosse o segundo homem ter sugerido deixa-la ali mesmo. Diana estava viva, muito cansada e machucada, mesmo assim permaneceu imóvel para que eles não tentassem mais nada, dentro de si era como se a morte estivesse caminhando a sua volta, como um urso farejando para ver se encontra sua janta. O coração batendo forte e a respiração quase correspondendo à situação. Ficou assim mesmo depois de ter sido jogada no chão aguardando eles afastarem para poder abrir os olhos novamente. Algum tempo depois ela estava sentada tentando se recuperar de toda aquela loucura e buscar o ponto de reencontro marcado por Carlos, atrás de si o vigilante continuava dormindo, ou fingindo também. Não teve tempo de saber a resposta.

Alguns minutos dali e ainda mancando pelos golpes sofridos Diana estava alcançando o topo das escadas antigas e desgastadas pelo tempo em estilo português repleta de pichações pelo caminho e clareada por uma luz laranja quase que apagando, o coração quase saindo pela boca devido a tudo que já havia passado naquela noite. Ao chegar no topo a moça parou quase se pendurando no corrimão cimentado da escada quando ouviu um barulho chamando por ela, sentiu as pernas tremerem e caiu no chão de alívio ao perceber que era Páti e Carlos esperando por ela sentados em um banco abaixo de uma antiga árvore. Dali uma cerca baixa dava visão para toda cidade. Estava machucada, assustada e perplexa em perceber o que eram capazes de fazer em nome de uma religião. A primeira experiencia de Diana em uma igreja seria uma garantia de que ela nunca mais pensaria no assunto não fosse o chamado de Carlos e a conversa daquela noite.



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